TEORIA DA LITERATURA


Leia o texto a seguir:

 

 Facultativo

 

 Estatuto dos Funcionários, artigo 240: "O dia 28 de outubro será consagrado ao Servidor Público" (com maiúsculas).

 

 Então é feriado, raciocina o escriturário que, justamente, tem um "programa" na pauta para essas emergências. Não, responde-lhe o Governo, que tem o programa de trabalhar; é consagrado, mas não é feriado.

 

 É, não é, e o dia se passou na dureza, sem ponto facultativo. Saberão os groenlandeses o que seja ponto facultativo? (Os brasileiros sabem) É descanso obrigatório no duro. João Brandão, o de alma virginal, não entendia assim, e lá um dia em que o Departamento Meteorológico anunciava: "céu azul, praia, ponto facultativo", não lhe apetecendo a casa nem as atividades lúdicas, deliberou usar de sua "faculdade" de assinar o ponto no Instituto Nacional da Goiaba, que, como é do domínio público, estuda as causas da inexistência dessa matéria-prima na composição das goiabadas.

 

 Encontrou cerradas as grandes portas de bronze, ouro e pórfiro (*), e nenhum sinal de vida nos arredores. (...) Tentou forçar as portas, mas as portas mantiveram-se surdas e nada facultativas. (...) João decidiu-se a penetrar no edifício, galgando-lhe a fachada e utilizando a vidraça que os serventes sempre deixam aberta. E começava a fazê-lo com a teimosia calma dos Brandões quando um vigia brotou da grama e puxou-o pela perna.

 

 - Desce daí, moço. Então não está vendo que é dia de descansar? (...) Então não sabe o que quer dizer facultativo?

 

 João pensava saber, mas nesse momento teve a intuição de que o verdadeiro sentido das palavras não está no dicionário; está na vida, no uso que delas fazemos. Pensou na Constituição e nos milhares de leis que declaram obrigatórias milhares de coisas, e essas coisas, na prática, são facultativas ou inexistentes. Retirou-se, digno, e foi decifrar palavras cruzadas.

 

 (*) Pórfiro = tipo de rocha; pedra cristalina.

 

 (Carlos Drummond de Andrade, Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1967, pp. 758-759)

 

No último parágrafo do texto, o autor parte do caso ocorrido com João Brandão para formular a ideia geral de que




  • pode haver falta de correspondência entre o sentido próprio das palavras e o que ganham nas situações em que são empregadas.

  • a diferença entre o que deve ser facultativo e o que deve ser obrigatório é uma questão menor, que não deve provocar discussão.

  • as imprecisões da linguagem verbal têm como consequência a inaplicabilidade da maioria das leis.

  • as palavras cruzadas favorecem a compreensão do preciso sentido que as palavras ganham com o uso prático.

  • as palavras, quando têm vários sentidos possíveis no dicionário, quase sempre produzem ambiguidades.