LITERATURA PORTUGUESA


Já a tarde caía quando recolhemos muito lentamente. E toda essa adorável paz do céu, realmente celestial, e dos campos, onde cada folhinha conservava uma quietação contemplativa, na luz docemente desmaiada, pousando sobre as coisas com um liso e leve afago, penetrava tão profundamente Jacinto, que eu o senti, no silêncio em que caíramos, suspirar de puro alívio. Depois, muito gravemente: Tu dizes que na Natureza não há pensamento... Outra vez! Olha que maçada! Eu... Mas é por estar nela suprimido o pensamento que lhe está poupado o sofrimento! Nós, desgraçados, não podemos suprimir o pensamento, mas certamente o podemos disciplinar e impedir que ele se estonteie e se esfalfe, como na fornalha das cidades, ideando gozos que nunca se realizam, aspirando a certezas que nunca se atingem!... E é o que aconselham estas colinas e estas árvores à nossa alma, que vela e se agita que viva na paz de um sonho vago e nada apeteça, nada tema, contra nada se insurja, e deixe o mundo rolar, não esperando dele senão um rumor de harmonia, que a embale e lhe favoreça o dormir dentro da mão de Deus. Hem, não te parece, Zé Fernandes? Talvez. Mas é necessário então viver num mosteiro, com o temperamento de S. Bruno, ou ter cento e quarenta contos de renda e o desplante de certos Jacintos... (Eça de Queirós, A cidade e as serras)

 

Considerado no contexto de A cidade e as serras, o diálogo presente no fragmento revela que, nesse romance de Eça de Queirós, o elogio da natureza e da vida rural:




  • Demonstra que a consciência ecológica do escritor já era desenvolvida o bastante para fazê-lo rejeitar, ao longo de toda a narrativa, as intervenções humanas no meio natural.

  •  Serve de pretexto para que o escritor critique, sob certos aspectos, os efeitos da revolução industrial e da urbanização acelerada que se  haviam processado em Portugal nos primeiros anos do Século XIX.

  • Veicula uma sátira radical da religião, embora o escritor simule conservar, até certo ponto, a veneração pela Igreja Católica que manifestara em seus primeiros romances. 

  • Indica que o escritor, em sua última fase, abandonara o Realismo em favor do Naturalismo, privilegiando, de certo modo, a observação da natureza em detrimento da crítica social.

  • Guarda aspectos conservadores, predominantemente voltados para a estabilidade social, embora o escritor mantenha, em certa medida, a prática da ironia que o caracteriza.