LITERATURA AFRICANA DE LÍNGUA PORTUGUESA


O Comissário apertou-lhe mais a mão, querendo transmitir-lhe o sopro de vida. Mas a vida de Sem Medo esvaía-se para o solo do Mayombe, misturando-se às folhas em decomposição.

[...]

Mas o Comissário não ouviu o que o Comandante disse. Os lábios já mal se moviam.

A amoreira gigante à sua frente. O tronco destaca-se do sincretismo da mata, mas se eu percorrer com os olhos o tronco para cima, a folhagem dele mistura-se à folhagem geral e é de novo o sincretismo. Só o tronco se destaca, se individualiza. Tal é o Mayombe, os gigantes só o são em parte, ao nível do tronco, o resto confunde-se na massa. Tal o homem. As impressões visuais são menos nítidas e a mancha verde predominante faz esbater progressivamente a claridade do tronco da amoreira gigante. As manchas verdes são cada vez mais sobrepostas, mas, num sobressalto, o tronco da amoreira ainda se afirma, debatendo-se. Tal é a vida.

[...]

Os olhos de Sem Medo ficaram abertos, contemplando o tronco já invisível do gigante que para sempre desaparecera no seu elemento verde.

(Pepetela,Mayombe)

 

Considerando o fragmento no contexto de Mayombe, os paralelos que nele são estabelecidos entre aspectos da natureza e da vida humana podem ser interpretados como uma




  • caracterização flagrante da dificuldade de aceder ao plano do raciocínio abstrato, típica da atitude pragmática do militante revolucionário.

  • figuração da harmonia que reina no mundo natural, em contraste com as dissensões que caracterizam as relações humanas, notadamente nas zonas urbanizadas.

  • representação do juízo do Comissário a respeito da manifesta incapacidade que tem o Comandante Sem Medo de ultrapassar o dogmatismo doutrinário.

  • crítica esclarecida à mentalidade animista que tende a personificar os elementos da natureza e ao tribalismo, ainda muito difundidos entre os guerrilheiros do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA).

  • reflexão relacionada ao próprio Comandante Sem Medo e a seu dilema característico entre a valorização do indivíduo e o engajamento em um projeto eminentemente coletivo.